O estupro da indiana

Escrevi que, de 2013 em diante, eu não daria espaço para coisas ruins. Ao contrário, eu buscaria aprender e, quem sabe, aprimorar coisas boas que possam ser facilmente replicadas por quem queira fazer o mesmo.

No dia 16 de dezembro uma moça saiu do cinema com o namorado, em Nova Délhi, capital da Índia. Eles não conseguiram pegar um riquixá e a opção foi pegar um ônibus no qual ambos foram surrados e a moça, além disso, estuprada por seis homens. Os dois foram jogados, nus, para fora do ônibus, na rua. A grande maioria das pessoas que passou por eles não os ajudou, cobriu ou tratou de levá-los a um hospital. A moça morreu no dia 29 de dezembro.

Como sociedade sofremos, claro, com o que aconteceu na Índia. Pensando na sociedade como unidade, um corpo social, é como se sofrêssemos com a dor profunda de um corte causado por um acidente com vidro quebrado que, mais dia menos dia, irá cicatrizar. Mas não é isso. O corte aconteceu porque não nos demos conta que o copo poderia cair, que poderíamos pisar nele. O problema não é o copo quebrado, o corte, a dor, a cicatriz, mas o fato que nossa visão está turva para enxergar o copo, nossa mão está suada e trêmula para pegá-lo e que estamos descalços e com os pés inchados quando pisamos nos cacos. Não é um problema isolado, uma ferida que cicatriza, mas uma doença generalizada no corpo social.

A humanidade não é algo natural, mas uma escolha. Em situações extremas seres humanos retornam à sua barbárie animal. A moça estuprada é mais uma. Ela foi estuprada por seis e morreu. Quantos homens estupram e matam muito mais do que só uma mulher? Quantos seres humanos matam outros de sua própria espécie por motivos banais? E destes, quantos cobertos por um manto religioso ou financeiro saem ilesos de seus atos e seguem vivendo como se nada tivesse acontecido, circulando como sangue podre em um corpo já tão doente.

Quais são as situações extremas que nos fazem retornar à barbárie? Elas têm sua raiz em duas marginalidades extremas e um mecanismo muito sórdido de controle. Uma margem é a da riqueza extrema que permite que pessoas julguem-se superiores e impunes a qualquer ato imputado a outras. Outra margem é a da pobreza extrema na qual a vida, por si, já é inumana, sem percepção alguma de valor. Entre as duas uma imensa zona de proteção passiva, isolando as duas margens e vivendo em uma ilusão de conforto rezando por dias melhores, jogando na megassena e dando graças a Deus por que o estupro, desta vez, aconteceu longe. Deus, se é que existe, deve estar muito puto. Não com os estupradores, mas com essa gente toda que escolhe a passividade e acha que está escolhendo ser humana.

Mas o sórdido mecanismo de controle é muito eficiente, calcado no capital, no governo e na religião. A gente nasce no pecado e devendo. Não fosse assim não seríamos, o mais rápido possível, batizados e educados para ganhar dinheiro.

Usei o batismo como exemplo em função de minha formação católica, mas sinta-se livre para trocar a expressão por qualquer rito iniciático de outra religião. A prática do bem é ensinada, nas religiões, como um caminho para o céu e não para melhorar o mundo em que vivemos. Isto cria um bando de conformados com o que temos aqui, na espera de uma vida eterna maravilhosa ou ao menos de uma encarnação melhorzinha, quem sabe em outro planeta. A gente se conforma e deixa pra viver melhor depois da morte.

A religião é ajudada pelo aparato governamental como mecanismo de controle, para manter a eficiência da zona de proteção entre as margens, legislando e julgando de forma a mandar pra cadeia os estupradores da moça indiana e deixar fora dela aqueles que estupram a vida de muito mais gente, de maneiras muito mais sutis. O capital que sustenta este mecanismo de controle é a forma pela qual a zona de proteção é escravizada. Todos temos que viver, ganhar dinheiro, votar em quem proteja nosso emprego e salário e rezar para quem nos garanta uma vaguinha no paraíso e nos conforme com a podridão momentânea com a qual convivemos. Afinal, esta podridão dura só uma vida. O que é isto comparado com a vida eterna?

Eu não desisti da ideia de buscar aprender coisas boas, replicá-las e buscar construir um mundo melhor. Afinal, estou nele e este aqui está presente, é real. Nele viverão minhas filhas, netos, muita gente de quem eu gosto e é muito mais nova que eu. O inconformismo e a indignação são coisas boas. Ficar calado e imóvel é aceitar, do jeitinho que está, o mundo que vamos deixar de herança.

Sigo na esperança de que o brutal assassinato desta moça indiana sirva para que muita gente se dê conta da real doença do nosso corpo social e que a nossa escolha pela humanidade traga a sua cura.

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Publicado originalmente no Dicas-L.



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