Computação para Humanos

Quando os primeiros computadores começaram a se popularizar, realmente eram poucas as pessoas que tinham o conhecimento suficiente para interagir com eles. A linguagem que os programadores deveriam utilizar era a própria linguagem da máquina, sem intermediários. Com o tempo, o aumento na capacidade de processamento e armazenamento de informações, os computadores puderam ficar cada vez mais próximos dos usuários comuns, humanos como nós. Programadores passaram a instruir a máquina em linguagens naturais de alto-nível, muito próximas da linguagem falada, ao menos da linguagem falada nos países de língua inglesa... Ainda assim, a informática ainda está em um pedestal onde ao qual parece que apenas os iniciados têm acesso. Isto se perpetuou pela falta de acesso dos humanos aos computadores por vários motivos. O principal talvez seja o fato de que, ainda, computadores não são para humanos. Afinal, quem foi que disse que o teclado e o mouse são a melhor forma de acessarmos o computador?

Como você se comunica?

Humanos normais gostam de se comunicar. A fala é a forma de expressão mais usada. Talvez por isto a evolução tecnológica privilegiou, desde o princípio, a fala. Se pensarmos bem, toda a forma que buscou perenizar a informação partiu do princípio da representação da fala. Assim foi com a invenção da escrita. Mesmo a primeira forma de transmissão à distância de informação, o telégrafo, codificava a escrita que, por sua vez, era a própria codificação da fala. O telefone permitiu a volta às origens e à comunicação intuitiva valorizando, novamente, a fala. Como a imagem vale mais do que mil palavras – ao menos diz o ditado – a tecnologia acabou levando ao surgimento da TV. Não fosse por limitação tecnológica, ao surgir a TV, teria já surgido a vídeo-conferência, ainda incipiente nos dias de hoje.

A comunicação depende dos sentidos, não necessariamente de todos. Mas mesmo pessoas para as quais algum sentido falta, não falta a comunicação. Não é raro ver que alguma deficiência acaba por levar as pessoas a outros meios de expressão: alguns que emulam a fala por linguagem de sinais – o código reinventado. Outros meios extrapolam a fala e estabelecem uma comunicação direta aos sentidos, como a música, a pintura e outras formas de arte.

Mas voltando à informática, ao computador, parece que preferimos escolher interagir com estas máquinas que expandem (será?) nossa capacidade de raciocínio através de coisas como o teclado e o mouse. O teclado é ainda resquício da imprensa de Guttenberg, do linotipo, de formas de deixarmos impressa nossa verbalidade. Puxa, se o telefone já superou isto, se telefones transportam a nossa voz, se assistimos televisão graças à tecnologia, por quê somos obrigados a nos comunicar com computadores cada vez mais inteligentes através de um teclado ou mouse? Onde está a intuitividade no uso destas ferramentas?

Mark Shuttleworth ficou milionário ao antever que a Internet seria usada como um mecanismo de venda de mercadorias a pessoas como eu e você. Assim, investiu na criação de um ambiente onde compra e venda acontecessem de forma segura na Internet. Fez tanto sucesso que ganhou dinheiro suficiente para comprar uma passagem em um ônibus espacial soviético e tornar-se o primeiro sul-africano no espaço. Talvez por ter tido tanto contato com a tecnologia, Mark também questiona: a computação como a conhecemos é para seres humanos?

Com esta idéia na cabeça e muito dinheiro na mão, Mark investiu na criação de uma distribuição de softwares contendo um sistema operacional e uma série de aplicativos. Optou pelo software livre pois esta era a forma pela qual pessoas poderiam modificar seu produto e melhorá-lo, adequando-o a suas necessidades específicas. Esta distribuição criada por Mark chama-se Ubuntu Linux. Ubuntu é uma antiga palavra africana que significa “humanidade para todos os outros”. Ubuntu também significa “Sou o que sou em função do que somos todos nós.” -- Todos humanos como nós...

A preocupação com o acesso de pessoas com algum tipo de impossibilidade que as impedem de trabalhar com a tecnologia da mesma forma como aqueles que se acostumaram a trabalhar com o teclado e o mouse acaba nos levando a refletir sobre como estaremos usando computadores no futuro. O projeto de acessibilidade da plataforma Gnome, especialmente através do projeto Gnopernicus, adiciona ferramentas como lente de aumento e síntese de voz, além da possibilidade do usuário ler a tela em braile e mesmo “sentir” o que está na tela do computador através da tradução de algo que é plano em texturas.

O Dasher, uma aplicação para a entrada de texto preditiva, oferece um “aglomerado” de letras que vão formando palavras de dicionários que podem ser selecionados – não só dicionário de idiomas, mas também de linguagens de programação, notação musical e outros. O método de “digitação” pode ser através do teclado ou mouse, mas também com um dispositivo chamado eye-tracker, que permite que se escreva “olhando” para a tela. Obviamente se nota a prática disto para quem não tem as mãos à disposição para digitar, mas mesmo para quem as tem, com um pouco de treino é possível liberar as mãos para outras atividades – desde que a coordenação motora permita! Mas afinal, não dizem que usamos apenas 10% de nosso cérebro?

Ainda assim, o Gnopernicus e o Dasher se prestam melhor à escrita e leitura que, como dissemos antes, é uma forma de representação da fala. Mas não podemos deixar de lado humanos que por um motivo ou outro não sabem ler. A tecnologia hoje já fornece a estrutura necessária para que exista a comunicação de forma independente da leitura e escrita. Há que se considerar, porém, que voz e imagem trafegando pela internet ocupam muito mais recursos do que textos... A Universidade de Carnegie Mellon, em seu projeto Pctvt criou um computador que em 2007 poderá ser vendido por USD 2.500. A idéia é que o mesmo seja de propriedade comunitária, servindo a um grupo de algumas dezenas de pessoas. Com uma interface que prescinde da capacidade de leitura e escrita (ainda que muitas pessoas não alfabetizadas reconheçam e trabalhem com números), a máquina será simples o suficiente para que as pessoas se comuniquem umas com as outras, a usem como um dispositivo multimedia para jogos educativos e possam mesmo aprender a ler e a escrever com ela. A máquina ainda poderá obedecer a comandos de voz, aliviando o uso de outras formas de entrada de dados.

Há ainda os que sabem ler e escrever, mas não em português. Bhasha é uma linguagem da Índia para a qual não é economicamente viável para empresas comerciais desenvolverem ou traduzirem seus softwares. Com software livre, porém, basta que um grupo de interessados faça isto. O Amida Simputer, um “palm” usado pela população rural da índia, muitas vezes também na forma de propriedade comunitária, possui o Bhasha Notebook. O Amida Simputer ainda possui interfaces que o tornam utilizável para aqueles que pouco sabem ler ou escrever.

Outra coisa que inegavelmente dificulta o acesso dos humanos aos computadores é o seu preço. Uma iniciativa do Dr. Nicholas Negroponte do MIT conseguiu projetar um notebook que, se produzido em larga escala para países de baixa renda, deverá custar cerca de 100 dólares. Leve e robusto, a máquina do MIT é um dispositivo de acesso à internet com alguns recursos interessantes de robustez e autonomia. Um gerador com uma manivela permite que suas baterias sejam carregadas mesmo quando não há acesso à energia elétrica.

Ainda assim, para a maioria dos países pobres, para os humanos destes países pobres, 100 dólares é um valor proibitivo. O notebook do MIT só poderia ser viabilizado com investimento dos governos destes países. Uma ação mais imediata e barata é a implantação de telecentros comunitários, que podem ser organizados e administrados por voluntários da própria comunidade. Carlos Morimoto, o autor do Kurumin, idealizou um “pendrive” com uma distribuição mínima de softwares e ferramentas de privacidade que, custando menos de 10 dólares por unidade, permitiria a privacidade e individualidade no acesso à telecentros comunitários.

Este texto não pretende dizer que os exemplos aqui expostos são os que devam ser seguidos, mas provocar o pensamento, a dúvida sobre a forma como nós, humanos, temos acesso à tecnologia. E se somos realmente todos nós que podemos ter acesso. O que não podemos é permitir que a tecnologia seja um elemento de marginalização, ao invés de inclusão, de todos os nossos iguais – e também de todos os nossos diferentes. Humanidade é também diversidade.

Nota: Este texto foi criado a partir de uma apresentação que desenvolvi a pedido da organização do 2.o Fórum Gnome.



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